– Bom dia, professora Maura! Como hoje é seu primeiro dia de trabalho em nossa escola, ainda antes de apresentá-la aos alunos, gostaria que a senhora identificasse quais alunos irão desenvolver dificuldades de aprendizagem.
– Ótimo, senhor diretor. O senhor pode me dizer quais são, se é que existe um ou alguns?
– Isso eu ainda não sei, professora. Não fizemos o teste, mas a senhora poderia começar sua atividade fazendo...
– Teste? Que teste, senhor diretor?
– É simples, coloque pedacinhos de papel branco em uma bolsa e misture a eles cinco ou seis pedacinhos vermelhos. Depois, peça a cada aluno que, sem olhar, retire um papelzinho. Os que saírem com o vermelho, por certo, apresentarão dificuldades de aprendizagem...
Exagero? Sem dúvida, mas de maneira alguma fantasia.
O que, na realidade, acontece na maior parte das nossas escolas é um procedimento mais ou menos análogo, ao se rotular crianças com dificuldade de aprendizagem. Se não existe o sorteio aleatório, existe a vontade de se considerar limitados os que apresentam alguma dificuldade na habilidade, que a escola ou a cultura vigente considera válida.
Uma criança, ou mesmo um adulto, com imensa inabilidade para desenvolver relacionamentos interpessoais não é rotulada como tendo dificuldade de aprendizagem, mas se apresenta dificuldade na leitura, o rótulo já lhe cai bem. Mas, convenhamos! O que é mais importante na vida? Aprender a ler ou fazer amigos? Saber matemática ou ser capaz de sobreviver à violência das grandes cidades? Apresentar facilidade para compor ou desenhar ou possuir notável capacidade de memorização para hierarquias dinásticas impostas pela História?
De maneira geral, todos os seres humanos apresentam limitações nesta ou naquela habilidade e praticamente ninguém é proficiente em absolutamente tudo, mas, dependendo da cultura em que se nasce e da escola que se freqüenta, as nossas inabilidades são consideradas irrelevantes e, assim, somos rotulados como “normais”, enquanto outros, por falta de sorte, ainda que extremamente habilidosos nesta ou naquela ação, recebem o rótulo de “anormais” porque não desenvolvem plenamente o domínio da leitura, da compreensão de mensagens, da capacidade de cálculo ou do raciocínio matemático ou ainda a audição, a fala ou a expressão escrita.
Não pretendemos, com o exposto, afirmar que não existem dificuldades especificas e que estas não mereçam ser trabalhadas. Seria tolice e ato desumano defender essa tese e negar essa ajuda, quando possível. O que se pretende afirmar é que a rotulação inconseqüente é quase uma rotina e o elenco de habilidades importantes para viver são literalmente negligenciados pela educação convencional.
Muitas vezes, uma criança apresenta dificuldades de leitura e compreensão de um texto, pelo infortúnio de apresentar disfunções somente notadas no ambiente cultural em que nasceu. A estrutura fonética da língua portuguesa, por exemplo, é essencialmente diferente da estrutura da língua inglesa e esta, por sua vez, apresenta insondáveis abismos em uma comparação com o árabe ou o chinês e, dessa forma, se a criança possui sérias deficiências na compreensão de sistemas de escritas logográficas, como a chinesa, mas nasceu no Brasil, será para sempre “normal”, como seria “normal” uma criança que, com essas dificuldades, nascesse na China, mas tivesse que viver apenas aprendendo e falando português.
Isto posto, ficam as questões que esta crônica pretende sugerir: primeiro, o corpo docente de uma escola, após cuidadosa reflexão e plenamente sintonizado com o destino que deseja a seus alunos, deve destacar quais habilidades importa desenvolver e, desta forma, ampliar o leque das que apresentam alguma dificuldade de aprendizagem; segundo, identificar crianças com essas efetivas dificuldades e buscar meios, instrumentos, recursos e pessoas, para que seja prestada efetiva ajuda, não esquecendo jamais que benefício algum se mostra eficiente se, antes de perceber sua ação, carimbamos ou rotulamos os alunos.
Do exposto sobra uma singela conclusão. Nada é mais fácil na atividade docente que rotular este ou aquele aluno, nada esconde mais depressa nossa efetiva incompetência que achar que a dificuldade de uma criança não se deve à qualidade de nosso trabalho. Portanto, na maioria das vezes, quando rotulamos uma pessoa como portadora de dificuldade de aprendizagem, estamos evidenciando nossa óbvia dificuldade de sensibilidade.
(* ) Celso Antunes é escritor, pesquisador, especialista na área de Inteligência e Cognição e autor de vários livros.
Contato com o autor: celso@celsoantunes.com.br

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